O mais estranho não era aquele burburinho, cortado às vezes por um silêncio de catarse, nem o tic-tac dos andarilhos a deslizarem pelo chão de tijoleira acastanhada no corredor do pavilhão do desespero. Não era também a imobilidade anciã e enrugada de quantas, sentadas nas cadeiras, olhavam através da vidraça para o verde escuro do amplo jardim. Havia um lago ao centro, onde uma pachorrenta tartaruga era a única vida presente. De quando em vez a tartaruga fazia as delícias da pequenada que brincava, envolvida na sua inocente traquinice, enquanto os pais faziam a visita aos seus avós.
Naquele sítio as novidades vinham de fora, trazidas pelas visitas. O cenário ali era sempre o mesmo: paredes de pé alto, cor de mel, mil vezes olhadas, como se reflectissem a imagem do passado daquelas mulheres, sentadas em carreirinha no corredor, a olharem pela vidraça para o verde escuro do amplo jardim, como se estivessem vivas pelo simples facto de transportarem as suas almas vivas nos seus corpos mortais.
Em cada quarto quatro camas de ferro, apenas quatro, estreitas e alinhadas, e impecavelmente arrumadas.
O pesoal auxiliar era diligente e cauteloso.
Ela, sempre sentada na mesma cadeira, a olhar através da vidraça lá para fora, para o jardim, imaginava-se às vezes uma princesa enclausurada no seu palácio de mármore, pensando que a tartaruga era um pajem enfeitiçado.
Às vezes os seus pensamentos atingiam alardes de realidade, e então perguntava-se_
"-Porquê tantos cuidados?..."
Ela pensava e consumia rios de imaginação naquele espaço geriátrico, porque pensava que, pensando e imaginando coisas, talvez fosse a única maneira compensadora de ver o tempo a passar à medida que, inexoravelmente, envelhecia.
Nunca gostava de conversar, e muito menos de se meter na conversa dos outros.
O silêncio para ela era muito mais do que a ausência de sons.
" Quem vai,vai; quem está, está!"
Esta era a sua filosofia devida. Entre outras.
Mas na hora das visitas, sentada naquela cadeira a olhar para o jardim, ficava sempre condenada a escutar a conversa dos outros, gente tagarela que trazia as novidades lá de fora, que palrava as suas vidas secas, cheias de angústias vazias, como quem rezava um rosário de medos.
De vez em quando lá tinha uma visita.
Quando se encontrava sozinha costumava inventar combates imaginários, de pré-purgatórios, de recobros espirituais, de lutas onde a vã glória enfeitasse o seu velho corpo, enrugado e doente, e lhe transmitisse a esperança de continuar a ocupar o seu espaço neste mundo, cada vez mais superpovoado de FOLHAS DE OUTONO.
Enquanto as visitas falavam umas com as outras disto e daquilo, ela punha-se a pensar no tempo em que era uma mulher esbelta e esmerada e tinha gosto na sua casinha, que a trazia sempre tão limpa, tão limpa que se podia comer no chão!
E aquelas panelas de alumínio, tão reluzentes? - Que lindeza!...
Tudo era um brinquinho!...
Agora já nada fazia sentido.
Quando tinha de ir aos médicos, estes pareciam-lhe demónios brancos, sempre a dizer-lhe para se mexer, a dizer-lhe para andar, nem que fosse agarrada ao andarilho ou à bengala, ou ao corrimão da parede, e que não ficasse para ali parada a ver a banda a passar, sempre sentada na cadeira, no mesmo sítio.
- Quem pensavam eles que ela era?...
- Alguma senil?...
Não!
Faria tudo quanto lhe desse na real gana, e ficar ali sentada era o que mais lhe apetecia...
Talvez esta sua postura quisesse demonstrar a todos, até ao senhor de estetoscópio ao pescoço, que quem decidia o que devia ou não fazer era ela.
Era dona e senhora da sua vontade. E esta liberdade era muito sua!
Por isso o jardim verde escuro, com aquele lago ao centro e as crianças a brincarem com a tartaruga nas horas da visita, era o seu refúgio, o seu confidente. Silencioso.
"- Porque não vai dar uma voltinha?" - dizia-lhe alguma visita quando a ia visitar e a encontrava invariavelmente no mesmo lugar.
"- Está sempre aqui sozinha. Vá pelo menos até lá baixo, à capela, e reze um bocadinho!"
- Ela sorria, naquele sorriso de santa, vestido de ironia e de uma compreensão infinda. Sorria porque - como se isolava sempre - talvez por isso a achassem louca; sorria porque ficava contente quando alguém se lembrava dela e a visitava, e porque sabia que, no julgamento que as pessoas faziam dela, manifestavam uma profunda ignorância!...
Não percebiam nada; nada de nada, e nem sequer suspeitavam, coitadas, que também elas eram vítimas de uma marcante solidão, vivendo na cidade amarfanhada por gente a acotovelar-se a rodos, mas cada vez mais sozinha, onde a vida de agruras levava cada um a situações competitivas, às vezes aleivosas, sem espaço sequer para o reencontro reflectivo e para a altruísta dádiva do amor!
Se não fosse assim talvez ela não tivesse necessidade de estar ali...
Mas a vida agora era assim, dizia de si para consigo, como quem encontrava um bálsamo para lhe massajar a angústia!
A saudade, a saudade dos tempos passados, alimentava-lhe o corpo e seduzia-lhe a alma! As recordações do seu tempo de juventude estavam presentes. Pareciam actuais.
Eram palavras lavradas na sua mente! Tinha sempre tanto que recordar!... Não queria perder pitada!...
O tempo urgia!...
Estava cansada naquela tarde.
Não lhe apeteceu continuar a ouvir as conversas daquelas visitas que nunca se calavam, e falavam, e falavam, contando o tudo e o nada às outras utentes que se gabavam das visitas que tinham.
Naquele dia nenhuma visita tinha aparecido.
Ela sentia-se mais sozinha que nunca.
Apeteceu-lhe levantar-se, e devagarinho dirigiu-se para o quarto.
As quatro camas de ferro, apenas quatro, estreitas e alinhadas, lá estavam.
Na mesinha da sua cabeceira, uma fotografia de quando era nova.
Com as mãos trémulas, pegou nela e acariciou-a.
Não havia dúvidas que continuava a gostar de si.
Depois, deitou-se.
Não sei se rezou ou não!
Fechou os olhos!
Agarrada à vida, ainda se mantém esta FOLHA DE OUTONO!
Fernando Cartola
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
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